Por Celina Santos
Num de seus versos mais famosos, o poeta mineiro Guimarães Rosa sentencia: “O que a vida quer da gente é coragem”. Tal máxima traduz, com perfeição, a trajetória do pastor maranhense Apolônio Pereira Brito, que completou 101 anos em 7 de janeiro e vive em Itabuna há 59. Filho de ex-escravos, ele nasceu num remanescente de quilombo e deixou a família de oito irmãos, para ganhar a estrada a pé, acompanhado apenas de um saco sobre as costas e um claro desejo: aprender a ler.
O então menino Apolônio escreveu, a partir dali, uma história real que acredita estar devidamente registrada no céu. “Eu tinha a maior fome pela leitura. Quando saí de casa, me despedi de minha mãe e disse: ‘Vou procurar um lugar onde eu possa estudar e trabalhar’. Nunca fui portador de recursos, mas de coragem sim”, recorda, num encontro com as ideias do escritor citado no início deste texto.
A primeira oportunidade de trabalho longe da terra natal, após andar quilômetros e dormir no mato, ele encontrou em garimpos de diamante e cristal em Goiás. “Achei pedra de diamante de 18 quilates, mas não conhecia nada e lá tinha os ‘capangueiros’ e fui roubado. Era diamante que dava pra comprar um avião, mas vendi baratinho”, exemplifica. Sempre em busca de estudar, foi parar no Piauí, em Pernambuco e, tempos depois, no Rio de Janeiro. Lá, cursou oito anos de teologia num instituto ligado à Igreja Batista.
União pra toda a vida
Na mesma Minas Gerais de Guimarães Rosa, nasceu Isabel. O caminho dela se cruzou com o de Apolônio no Rio de Janeiro, para onde também foi estudar. Casaram-se quando ele tinha 42 anos e tiveram seis filhos. “Santa Isabel, minha companheira. Só tive uma mulher, o que é raro. Fui criado na virgindade. (…) Sempre quis muito bem à minha esposa; modéstia à parte, fui fiel, ela merecia”, derrete-se, lembrando-se da digníssima, falecida há 7 anos.
Ao mesmo tempo em que reconhece ser incomum um homem ter apenas uma mulher, ele critica a forma fugaz como as relações se dão hoje. “Antigamente, quando o juiz, padre ou pastor diziam ‘estão casados até que a morte os separe’ … essa expressão não se ouve mais. Agora, eles podem dizer isso, mas o casal diz ‘até quando der’. Qualquer coisa é ‘não tá dando mais, tá roncando muito…’. Agora, isso é um contrassenso. Para a vida, para os relacionamentos, isso é ruim”, analisa.
Saúde além dos 100
Pastor Apolônio, que exibe um sorriso largo na maior parte do tempo, tem uma aparência que não deixa dúvidas quanto à saúde preservada junto com a idade. O único episódio que fugiu a essa rotina foi quando sofreu um grave acidente de carro, mas se recuperou. “Naquele eu morri e depois ressuscitei”, compara.
Ele conta que guarda muitos dos hábitos de quem foi criado na zona rural. Por exemplo, dorme por volta de 20 horas e acorda de 4h30min a 5 horas. Sobre a alimentação, não há restrições – mas tem uma preferência por peixe ao invés de carne vermelha. “Minha filha, só não como hoje H. Como qualquer coisa. Não tem especialidade não. Sempre comi de tudo. Sou menino criado na fazenda, acostumado com a vida rural, rústica, de pé no chão”, afirma, com uma contagiante gargalhada.
Ele confessa, inclusive, que gosta mais de estar no campo. “Eu nasci e me criei no duro, vida pesada na fazenda. Trabalhando, correndo atrás de boi, a pé, montado. Fui criado no pesado, com trabalho braçal. Não tenho uma vida muito sedentária. Não posso ficar parado. Eu gosto muito de fazenda. Moro lá e aqui. Gosto de fazenda mais do que da cidade. É mais tranquilo e tenho do que me ocupar; é muito monótona a vida da cidade. Ainda capino [com a enxada] e corto de machado dos dois lados”, detalha, dando ideia do vigor com o qual todos sonham até o centenário.
Quando está em Itabuna, na casa de uma filha, seu Apolônio dedica-se a um ritmo intenso de leituras e ouve rádio. Exerceu o ofício de pastor até os 100 anos. Hoje, ainda frequenta a igreja, mas já não está à frente de um rebanho, como ele diz.
Pitadas de felicidade
Mesmo tendo uma vasta bagagem intelectual – faculdades de teologia (batista e neo-testamentária) e filosofia, além dos ensinamentos da caminhada –, pastor Apolônio é modesto quando comentamos: O Senhor tem muito conhecimento… Ao que ele responde: “Tenho um pouco”.
Questionado se ficaram arrependimentos para trás, diz, convicto: “Não. Não tenho frustração de nada. A frustração por não realizar tudo que sonhei não dá pra me acabrunhar. O meu conhecimento da palavra de Deus me proporcionou essa grande bênção de viver muito, não me preocupo com nada. Eu me ocupo, mas não me preocupo. Porque há diferença entre se ocupar e se preocupar”.
E que conselho dá para quem quer viver até 100 anos nesse mundo tão conturbado? “Abstinência de tudo que seja prejudicial à saúde. Não beba álcool. A vida desenfreada contribui em 90% para reduzir a vida”, observa.
Visivelmente sereno e grato pela longa existência que já lhe foi concedida, ele prefere não externar por quanto tempo ainda deseja viver. “Não tenho quantidade que eu possa imaginar. Estou inteiramente abandonado nos braços do dono da vida, do senhor de tudo, que é Jesus. Não me preocupo com isso, de modo que não tem limite”, argumenta. E tem uma certeza: “Eu sou muito feliz, graças a Deus!”.
Diante daquela história de vida que serve de exemplo, uma pergunta era inevitável: Qual foi a receita, para chegar aos 101 anos, forte desse jeito? “É uma só: confiança em Deus, trabalho, paz e bom relacionamento com todos”. Como seu Apolônio é uma poesia viva e, ao mesmo tempo, uma oração em forma de homem, só resta acrescentar: Amém!
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